domingo, 28 de julho de 2013

os ramos

Demoro agora o passo nos lugares onde, sem saberes, passava só por sentir o gosto de te ver, distraído, a ler como quem contempla o vazio e é alertado ante o abismo tivesse. Aí, antes que me visses, e o meu corpo sabendo do perigo que se adivinhava emergia dele vários ramos e o teu ar, atarantado, denunciava que algo sinistro se erguera. Os outros a quem o vazio é uma criação de um estilo qualquer, que nunca alcançaram,  não viam e alertavam-te para a estrada que devias percorrer 
e quando lhes deste ouvidos o meu corpo passou a ser um mero corpo por muito que demore o passo nos sítios onde era comum ver-te. Ainda que nunca tivesse tido a oportunidade de falar-te. E o ramos nunca mais tivessem surgido. 

sábado, 1 de junho de 2013

Ao início (meio diria) ou fim

Ao início (meio diria) ou fim e na inevitabilidade 
de pensar em ti magoava-me,
arranhava-me, mordia os lábios... doía sim,
e eu não chorava. 
Raramente choro e por isso selecciono o que, 
de facto, 
o merece e nunca sabemos bem o que é. 
E, 
sabes, 
o amor tem de ser alimentado 
caso contrário revela-se por inteiro como um bicho acossado:
cruel. 
De onde provém a mesquinhez e,
pior, 
a vileza. 

E chega uma altura em que, surpreendentemente, não pensas mais nele. Os dias ganham um novo ímpeto e percebes por fim (ou início) ou meio que olhar e andar para trás é uma canseira por mais que te apeteça chorar. É aí as válvulas deixam de retrair o sangue e até elas percebem que o amor, como a vida, não é para sempre. e onde outros corpos ganham vida. 

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Maria do Rosário Pedreira


As palavras começam a ficar velhas: têm
dores nas articulações e rangem, de vez
em quando, sem razão; reclamam óleos
e resinas, tempo e açúcares mais lentos.

Mas também eu estou velha demais para
oficinas, tão cansada de livros e papéis,
morta por viver outras coisas – por amor,

talvez espreitasse de novo nas mangas do
mundo e escrevesse uma fiada de búzios
no pulso da areia. Mas quantos dos teus
beijos perderia? Perdoem-me os que

ainda esperam por mim. Não sei se volto.

segunda-feira, 11 de março de 2013

Não sei se tudo errei ou descobri

Naquela altura o ter-te encontrado foi o que demais despropositado tive na minha vida. E minto. A forma como te deixei - ou me deixaste ir; e sei que não havia outra maneira - é o único travo de real de uma estória que me parece agora imaginária. Sei que mais anos se passarão sem te ver. Sei que se te vir que a indiferença me esmagará. Os sinais de fogo que teimamos em fazer em momentos de desassossego já não me confortam como confortavam. Sei que estás aí desse lado e que, neste texto, sabes do que falo. Sempre soube que a tua presença física nem era de todo o mais importante. Mas agora passado este tempo todo pergunto-me se voltaste à tua vidinha ou se a interrogação a que te obriguei ainda te comove e guia. O bem que me devotaste é como se a cada dia se esfumasse e logo chega o momento em que, mais uma vez, te invoco. Na esperança miserável desses sinais que já são tão poucos e que cada vez me sabem a menos. Quer isto dizer que te perdi? Ou que daqui para a frente só sou eu e foi essa a finalidade para que me preparaste? Responde-me uma última vez porque

As ordens que levava não cumpri

E assim contando tudo quanto vi
Não sei se tudo errei ou descobri
 
*Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, 3 de março de 2013

se mandasses fora

se me parasses de fazer perguntas respondia-te
não quero responder a nada
responder é tomar uma decisão 
implicaria mexer-me
cansar-me 
e tu se ao menos te confundisses nos meus olhos 
se ao menos soubesses fazer a pergunta certa 
aquela que me há-de desmontar, se mandasses fora as peças que tenho a mais 
se me construísses de novo sem a maldade 
sem o silêncio, sem outras gentes, sem as memórias...
agradeceria-te. Assim não. 


domingo, 3 de fevereiro de 2013

...


A felicidade não está no que acontece mas no que acontece em nós nesse acontecer. A felicidade tem que ver com o que nos falta ou não na vida que nos calhou. Devo dizer-te que não me falta nada, quase nada. 
Vergílio Ferreira, in Nome da Terra

Hoje quero que saibas que não te disse nada e quando te pedi para me morderes o coração era só para me certificar de que ele existia no meu peito. Tu preferiste beijar-me, nunca me mordeste e, assim, fiquei sem saber.
Patrícia Reis, in Morder-te o Coração

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Desfiz-me dos livros que li um por um enquanto os relia


Desfiz-me dos livros que li um por um enquanto os relia. Fiz mesmo questão de procurar alguns que não tinha na estante, que emprestava ou que desapareciam misteriosamente. Comecei por A invenção do dia claro, de José Almada Negreiros, não me dissesse que não duro nem metade para ler todos os livros da livraria da minha rua. Tive essa necessidade. Foi desejo. Foi mais que isso. Os livros só nos podem salvar uma vez. Salvar? Talvez não seja a palavra adequada mas não me ocorre outra. O que fica deles é certo, são memórias de um tempo em que nós não podemos voltar a ser o que éramos. Os peritos nesses casos dizem que amadurecem mas é mentira. Quem amadurece, na verdade, somos nós. E isso é triste.

Do dia para a noite a amizade que tínhamos por algo enegrece. Não que não esteja lá. Está. E os livros provam-nos isso. Mas como podemos voltar a tê-la por inteiro?,  como se estivéssemos a ler o livro da nossa vida pela primeira vez? Ah, não podemos fazer é pedir o impossível. O ciclo dos livros que lemos, como a vida, não é vicioso. Antes fosse. O mais que fazemos a nada nos vale, sim, é agora José Régio a ser queimado. O que logramos é encontrar outro que numa primeira leitura nos faça recordar tudo aquilo que perdemos os momentos a inocência o não saber ainda que o amor é para a vida mesmo que cada um vá por linhas diferente ou opte por outras frases com palavras mais complicadas ou contas e perdi o sentido do que estava a tentar dizer.

Como explicar? Então se um livro me encontrar amanha na livraria e me lembre algo estou a lembrá-lo de uma forma completamente nova, é como reviver. Reviver? Talvez não. É mais aperceber-me que afinal foi mais especial do que alguma vez pensei ter sido. Sim, deve ser isso. Agrada-me. A promessa que me obrigo daqui até ao final dos meus dias é essa: nunca mais reler um livro. E a verdade é que não sei do que falo.